Os cães na formação dos provérbios portugueses

Pastora da Serra da Estrela com o seu cão

"Serões", nº073 – 1911

A fixação oral do conceito popular, tanto sob a forma de ditado como a de provérbio é, pelo que respeita aos cães, uma das mais copiosas mostras do vigoroso sentido etnológico português.

Na curanderia de todos os tempos, na demonologia da Idade Média, na simbologia arquitetónica de diferentes séculos, o cão ocupa um lugar tão especial que, imiscuído sempre vemos, em um conjunto de atos, funções e objetivos os mais extravagantes.

E pode tanto atuar esta sobrevivência animista na tradição portuguesa que interessante observar é que, sendo o cão dos animais domésticos aquele que ao homem mais se afeiçoa, é, também o que lhe evoca a parcela mais sombria de mistério e de sobrenatural.

Encaramo-lo em figuração, soerguendo como símbolo de constância as urnas tumbais; surpreendemo-lo nas gorgulhas alcandorando rictus legendários; vamos defrontá-lo nos processos da Inquisição travestindo o espírito maligno.

E na pintura da última metade do seculo XVIII, realçando a beleza e a galanteria femininas; e nas locuções, ocorrendo uma vez ou outra à deficiência do vocábulo próprio; e na heráldica vinculando ancestrais direitos, o cão mais que outro animal, colhe, ora das suas características, ora da sua configuração e, sempre de um passado farto de tradicionalismo, a  voga que o perdura e o distingue e o repete.

Momsen constatou na escultura oriental exemplares de espécies arredias que são para a nossa admiração o quer que seja de veemente, tanto ao longo dessa arte austera o cão há merecido desvelos das mãos que o moldaram, solicitas e interessadas para a história e para a ciência.

Todavia, nada fecundo como esse conjunto de filosofia ingénua que propulsa para os eventos de cada dia, exarado nos ditados e nos provérbios lusitanos!

O cão, animal de vigília, ergue a orelha perscrutando, contrai as narinas farejando, circunvaga a pupila refletindo, sendo em qualquer oportunidade, consoante o caso o prescreva, - sagaz, matreiro, arrogante, cauteloso, faceto, porfiado.

O fabulista, vai-se ao engenho poético e movimenta-o para a moral e para o exemplo, entretanto, o povo, distribui-o em monósticos e em dísticos e fixa sínteses...

O adagio em que o cão faz de protagonista, repete-se, não como em lugar comum, que a ser assim banalizaria o conceito, mas como um axioma só por essa forma expressável...

Cão que ladra não morde,

sendo, do feixe proloquial, aquele pequeno dístico que mais vezeiro se tornou é, também, o que melhor, em estrutura, condensa a feição imagética que, impregnando-os, revestiu com eles a linguagem popular.

Na elocução proverbial, animada, jactante, e repentista, o estilista detém-se a admirar a sintaxe que, dir-se-á, é trabalhada em caprichos e lavranterias por um cultor de género desvelando supremos primares.

Se para a formação de um estilo que corresponda ao relevo pujante do seu génio típico, o povo se há esforçado através duma existência laboriosa, esse esforço culmina, máximo, ao analisarmos os provérbios, bastantes deles de natureza galaico-lusitana mas, alfim, todos revertendo para erguer alto o sentido étnico que nos assinala.

Rubinatein inspirou-se, para compor, em provérbios nossos, a comédia castelhana reverbera deles imbuída, em sua maneira cantada dá-los-emos, talvez, como um antecedente da canção o fado ...

Assegurar-se-á que sendo o proverbio a transfiguração do ditame plebeu, não apenas o cão, mas outros animais, tanto selváticos como domésticos, nele se intrometem, a com seus requisitos e atributos perfumarem «esse espantosamente rico tesouro da sabedoria tradicional da nação» corno refere a ilustre escritora D. Carolina Michaelis de Vasconcelos.

Todavia, é para o cão, animal propendendo por conformações instintivas para uma mais adaptada e afetuosa convivência, que eles, não só de preferência se endereçam como,  também, nessa preferência, definem a sua elaboração etnológica:

A ferida do cão cura-se com o pêlo do próprio cão.

Baba de cão até com pão.

Pragas em vão não as rogueis ao meu cão.

De graça nem os cães querem pancada.

Cães de raça querem-se para a caça.

Quem tem medo compra um cão.

O cão e o menino vão aonde tem mimo.

Cão de três não o vendas nem o dés que ao fim do ano saberás o que tens.

A má hora não ladram cães.

Uma vez cai o cão, a outra já não.

O cão e o gato comem o que está arrecadado.

Quem não tem pão não tem cão.

Os cães grandes não se mordem.

Guarda-te de homem que não fale e de cão que não ladre.

Quem acorda o cão dormido vende a paz e compra arruído.

Quem com farelos se mistura maus cães o comem.

Qual é o cão tal é o dono.

Água e pão comida de cão.

Ou para homem ou para cão leva a tua espada não mão.

Cão de palheiro nem come nem deixa comer.

A mulher e a cachorra a que mais cala é a mais boa.

Em janeiro nem galgo lebreiro nem açor perdigueiro.

Paralelamente às formas rítmicas e arrítmicas, se encontra a frase complementar ou  intercalar.

Vejamo-la, tanto ela interessa a orientação geral da recolta onde transparece o  poder sintético da linguagem do povo :

Como um cão à boa vida.

Nem os cães as tragam.

Como o cão e o gato.

Manteiga em focinho de cão.

Como cão por vinha vendimada.

Raciocínio de cão.

Preso por ter cão e preso por não ter.

Cem cães a um osso.

Acordar o cão que dorme.

Atirar como a cão danado.

Cães ladrando à lua.

Dos jogos infantis, um estribilho cantabile, merece para o caso, ser registado, quando diz:

Tão, balalão,

Cabeça de gato,

Focinho de cão!

…………………

assim como, de procedência erudita, convém não esquecer a apropriação proverbial popular da frase que menciona:

Tanto mais conheço os homens quanto mais adoro os cães.

Na delongada, mas tenacíssima assimilação, que o vulgo efetua das obras que mais cordialmente vão ao viés do sentimento, é para reparar como desceram ao uso, à guisa de proverbio rítmico quadras como esta:

Foge, cão,

Que te fazem barão!

Mas, para aonde

Se me fazem visconde?!

Concluindo este imperfeito estudo, seria lacuna não publicar uma tradução repentista de Bulhão Pato que, logo, então, conquistou foros de provérbio.

É a de aquele magnífico verso da escola petrarquiana, que dir-se-á insculpido em puro mármore por um cinzel  de ouro cintilante:

Non ragionare de lui sua guarda e passa, que o Poeta, caçador notável, e conhecedor, por conseguinte, de ótimos cães de caça, um dia, ao saber de certo apodo insciente, traduziu:

Os cães ladram, mas a caravana passa.

Severo Portela

Texto: "Terra Portuguesa" nº33-34, Maio de 1922

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