Etnografia Agropecuária: matança de cevados
Matança de cevados
O bacorinho
variço que foi adquirido na feira para marranchar e conduzido para o cortelho preso
pelo baracinho, está rotundo e gelatinoso pela abundante ingestão durante
a engorda, de lavaduras, broças e viandas.
São decorridos
já o São Martinho e o Santo André, datas que o adagiário
popular indica, no mês de Novembro, como propícias para a chacina dos recos:
- Em
dia de Santo André diz o porco; cué, cué.
- Por
S. Martinho, mata o teu porco, barra o teu vinho.
Está à porta o
S. Tomé (21 de Dezembro), proximidades do Natal, dia igualmente consagrado ao matadelo,
se não for preferido ainda um dia sereno de Janeiro, de lua minguante, como
recomendam os rústicos e apontam os prolóquios sentenciosos:
- No
dia de S. Tomé, pega o porco pelo pé.
- Em
Janeiro, um porco ao sol, outro ao fumeiro.
O quarto
crescente da lua é, segundo o preconceito popular beirão, a época mais adequada
ao corte de arvoredo, ao plantio de batatas e às matações.
Em Santo Tirso,
prefere-se que os porcos sejam abatidos pela lua velha: «vale mais uma lua velha, do que
duas novas», dizem os práticos.
Escolhido o dia
da matança, notar-se-á uma esfusiante alegria em casa do lavrador com a
previsão glutona de abastecer a salgadeira com carne para todo o ano, porque «um porco é uma botica» e muito desgovernada será a dona de casa que não
tenha sido previdente, engordando um marrancho.
Lá está o rifão
a condená-la:
- Pelo
Santo André, quem não tem porco, mata a mulher.
Matança do porco em 1535 |
Matar o porco
Ouvir-se-á,
então, o cuinhar aflito do bicho ao ser mortalmente ferido pelo facalhaz pontiagudo.
Arderão em
labaredas rubrilouras os fachoqueiros de carqueja, de palha, ou de tojo
chamusco, para musgarem a pele e as cerdas da vítima.
O orifício do
ânus será atulhado com um rolo de palha e o coirato fortemente esfregado com um
caco de telha, raspando-se-lhes o pelo com romba navalha, até ficar escanhoado
como nádega de menino.
Seguidamente,
será pendurado ao chambaril pelos pezunhos, colocando-se nas unhatas do cerdo
algumas cabeças de alhos, para afastar os maus-olhados.
É, por fim,
aberto, golpeando-se os lombos de alto a abaixo e entalando-se nos mesmos
algumas cebolas, para que a carne arrefeça mais prontamente.
Matança do porco em 1310 |
As carnes
Ao ser
estafonado, a distribuição já está prevista; as assaduras para a canalha,
e os lombelos
irão de presente - entre ramalhos de loureiro verde - para uma das
pessoas gradas da terra: o fidalgo, o senhor prior, ou o senhorio.
Far-se-ão as
separações dos jambelos, dos lacões, das breias, e da carne para
ensacar.
As tripas do
intestino grosso destinam-se aos palaios; as atacas, o rissol
e o redenho
são aproveitados com outros despojos da matança, para a diversidade de enchidos
em que é pródiga a cozinha nacional: as sorças, os paios, as cacholeiras,
as salsichas,
os bulhos,
as alheiras,
as paiolas,
as linguiças,
os morcilhos,
as moiras,
as farinheiras,
os peloucos,
as morcelas,
as tabafeias...
Três a quatro
dias depois de desmanchado, convidam-se os parentes e amigos para a cachola
(Alentejo) ou sarrabulhada (Minho) ou ainda para saborearem os pitéus tradicionais:
beloiras,
marrã,
pitoras,
rechina,
petas
e rijões
ou torresmos.
Escultura popular de Oliveira do Douro |
E ainda mais…
Além da carne
de fumeiro, tudo tem préstimo e é aproveitado:
- os pernões
(presunto),
- a moleja
(pâncreas),
- a sola
ou baio
(estômago),
- a caluga
(cachaço e espádua),
- a suan (ossos
da espinha dorsal),
- os coelhos
ou passarinhas
(pedaços compridos de carne, tirados do lombo),
- a carranha
(carne calosa tirada do céu da boca),
- o entrecosto
(espinhaço com parte das costelas),
- a banha
(unto das tripas),
- a fressura,
o suvantre,
as façoilas,
o corazil...
enfim, tudo,
desde a ponta do rabo à focinheira (tromba), que por sinal é
saborosíssima, devendo, porém, as pessoas que a comem precaver-se, porque é
sabido que farão em cacos toda a loiça com que lidarem.
Olaria popular do Sobreiro de Mafra |
No porco, tudo se aproveita
A substância
gordurosa tirada da carrilheira (maxila inferior) utiliza-se para fricções, e até a
bexiga tem aplicação, sendo cautelosamente guardada pelo lavrador para a
terapêutica veterinária dos bovinos.
Para que a
carne de rijar não se estrague, deverá ter-se presente que é boa prática
passar-lhe por cima um garaveto a arder, como deve haver a precaução de não
efetuar a matança ou a salga da carne no entreluo (interlúnio) para que os
resultados sejam de todo satisfatórios.
O toucinho
velho é bom para curar o aguamento das crianças, recentemente desmamadas, e
para lubrificar os lemes das portas, livrando-se, assim, a casa de bruxedos e
malefícios.
Por último,
deverá reter-se na memória que sonhar com carne de porco é mau agoiro, sendo
prenúncio de desgostos na família.
Nesta rápidas
notas vão focados vários aspetos etnográficos, muitos deles inéditos, outros
tratados já por diversos coletores que a estes assuntos têm dedicado particular
atenção.
Guilherme Felgueiras (da Associação dos Arqueólogos Portugueses) | (desenhos de Azinhal Abelho)
in "Ilustração" nº 240 - 1935 (texto editado
e adaptado) | Imagem de destaque: “Ilustração Portuguesa” – nº 736 – 1920